sexta-feira, julho 25, 2008

A Rua

Às vezes penso que metade das birras do Henrique não existiam se ele tivesse tido a mesma sorte que eu: de crescer na rua.
quado eu era miúda não havia medo de raptos, nem de roubos de crianças, nem dvd's, nem jogos de computador, nem computador... nem havia dramas porque o pai e a mãe passavam pouco tempo em casa.
Os meus pais trabalhavam bastante mais do que eu trabalho agora, e por turnos. A única empregada lá da casa era a minha mãe e por isso, desde muito cedo, aprendemos (eu e o meu irmão) que ajudar nas tarefas domésticas era fundamental.
Mas crescemos felizes. E na rua.
Houve palmadas (umas até bem fortes), mas nenhum de nós ficou traumatizado com isso, nem os meus pais foram acusados de abuso de menores.
Houve dificuldades: às vezes o dinheiro não dava para tudo. Não havia gelados todos os dias, nem fiambre do mais caro, nem idas à praia todos os fins-de-semana. Mas havia gelado uma vez por semana (no mínimo) e filete afiambrado (coisa que nunca mais consegui comer, confesso, mas que adorava na altura), e havia manteiga, e lá íamos à praia quando calhava, ou então passeávamos no Jardim do Campo Grande.
E havia a rua, aquele largo rodeado de pequenas casas onde morávamos (nós e os nossos vizinhos). E aquele largo tinha a dimensaão dos nossos sonhos. Ali fui professora, bailarina, princesa, índia... tudo o que quisesse me era permitido porque era precisso muito pouco para que os sonhos se concretizassem. Duas caixas de fruta do Tio Manel, uns papeis, umas canetas e uns livros antigos davam perfeitamente para brincar às escolas. Umas tiras de papel crepe atadas às cordas da roupa, um gravador e meia dúzia de cassetes eram o suficiente para um baile de Santos Populares. E as fogueiras de São João? E os jogos de berlinde? E as escondidas?
E as férias grandes em Marco de Canaveses? às idas ao rio com os meus primos? Mais de 20 miúdos enfiados numa poça de água. Corridas pelos campos... o roubo das uvas, e das cenouras dos vizinhos; brincar às escondidas no meio do milho... acordar com o chiar do carro de bois do Quinzinho... abrir a porta da côrte dos porcos para deixar o vizinho doido de raiva... ir em grupo, todos os netos, com a avó até à capelinha para rezar o terço... ir a pé, 3km, monte acima, para ir à missa de domingo...
Quando olho para trás e vejo a infância que tive, tenho pena de não poder dar nada de parecido ao Henrique. Os miúdos passam os dias enfiados em casa e na escola.
Meia hora no parque já é uma festa, mas mais do que isso não, porque a mãe está cansada, teve uma semana má, sente-se tonta com o calor... que raio de mãe.
A minha, a minha super-mãe, essa, entre um grito e um puxãozito de cabelos (que eu bem merecia), tinha tempo para jogar às cartas, brincar às cantigas, jogar ao sobe e desce. e depois ainda conseguia fazer o jantar, tratar de dois, filhos e de um marido, passar a ferro, limpar a casa e poupar, poupar o máximo que conseguia para que os seus dois filhos pudessem ser e ter o que ela nunca foi nem teve.
E às vezes, no meio desta angústia toda e desta lufa-lufa em que se tornou a minha vida penso se a minha mãe acha que valeu a pena. Se nós (eu e o meu irmão) correspondemos ao que ela tentou fazer de nós.
E penso na rua, naquele largo, naquele espaço mágico onde eu brincava e onde havia lugares-cativos. à porta da menina Maria, mesmo por cima da casota de cimento que tinha construído para o seu cão, era o meu lugar, o meu poiso preferido ali atrás do chafariz. à porta da Morgadinha sentava-se o Xico maluco, vizinho detestáve, espécie de monstro no nosso imaginário. Conquistar aquele lugar era um feito assinalável. Mas para isso era preciso que nos despachássemos cedo...
e a rua volta-me ao pensamento. E penso que o meu filho talvez fosse mais feliz com menos um par de all star ou menos um dvd e mais rua e mais tempo.

2 comentários:

margarida disse...

Nem mais!
Também eu cresci mais na rua do que em casa e concordo plenamente com o que dizes. O problema é que se calhar a culpa é,em primeiro lugar nossa, que lhes queremos dar tudo do bom e do melhor em termos materiais e em segundo lugar dos tempos de hoje que já não nos permitem ter a despreocupação dos nossos pais quanto a raptos e afins.

bjinhos

3Picuinhas disse...

Tens toda a razão.Quando olho para as minhas filhas penso o mesmo, e lembro-me do alentejo e dos 5 quilómetros que fazíamos de bicicleta para ir tomar banho á barrage, e dos figos roubados, e da serra trapada á noite para ir namorar na capela da Senhora da Penha...tentei mudar a vida, sair da cidade, ir para o campo e ainda não consegui...mas lá chegaremos!Enquanto não se consegue, vou fazendo o que é possível...como tu.