quarta-feira, abril 18, 2007

Vazio

Sento-me à frente do computador com vontade de escrever, de tentar passar para este espaço parte da confusão que ocupa a minha cabeça, mas acabo quase sempre por embater numa série de dúvidas. Como dizer o que sinto sem estar sempre a escrever a mesma coisa? Eu tenho vontade de escrever, é um acto libertador, deixa-me aliviada. Mas, quando começo a encadear pensamentos, fico sempre com a sensação de que, invariavelmente, estou sempre a escrever a mesma coisa.
E depois penso, mas se a minha vida tem, nos últimos tempos, sido sempre este misto de dor e angústia como posso passar ao lado dela? Sem a descrever, sem a escrever?
O meu pai está internado há mais de dois meses. Foi internado na véspera do meu aniversário. E, desde esse dia, nunca mais voltou a respirar o ar da rua. Este ar de Primavera que nos enche os pulmões e nos faz pensar na vida.
Ontem, depois de conversar com a minha mãe, percebi que ela está quase a atingir o limite das suas forças. Sente-se perdida, sem saber o que esperar da vida. Percebi com clareza que o que mais lhe custa é a mentira. É não poder olhá-lo nos olhos e responder com franqueza às suas questões. O meu pai acalenta a ilusão de sair do hospital, em definitivo. O meu pai ainda crê que pode ficar “bem”, dentro de uma série de limitações. E a minha mãe, sua companheira de mais de 30 anos, não lhe pode dizer a verdade. Sendo que nem ela própria tem uma noção rigorosa do que é a verdade dele. Estamos neste limbo, entre médicos, entre opiniões e entre aquilo em que queremos acreditar. É realmente difícil entender que ele está a morrer. Olhando para ele não tenho essa noção. Ele está fisicamente melhor, não tem, nem de longe nem de perto, o aspecto de um moribundo. Mas está a morrer. Essa é a verdade mais dura e crua de aceitar.
O meu pai tem um buraco de 20 cm no pescoço. Um buraco a céu aberto, que nunca fechará por si, que implica uma cirurgia muito grande só para o fechar. O problema é que fechar esse buraco de pouco adianta sem tentar reparar todo o mal que está lá dentro: uma série de órgãos queimados e destruídos pela radioterapia. Fechar aquela cratera (e isto se ele resistir à operação) poderá levá-lo para casa, mas por pouco tempo. Só que com tantas lesões internas e com um risco de hemorragia tão grande será um milagre encontrar um médico que o queira operar.
E perante isto o que nos resta?
Eu sei que é bom tê-lo e que não se deve desistir, e mais isto, e mais aquilo. Mas a minha cabeça não se rege por estas regras. No que penso na maior parte do tempo é nisto:
O meu pai nunca mais voltará a falar; o meu pai nunca mais voltará a cantar, como tanto gostava; o meu pai nunca mais sentirá o paladar do que quer que seja; o meu pai nunca mais poderá beber um café, sentir o sabor de um morango, beber um bom copo de vinho… o meu pai não sabe distinguir a hora do almoço da hora do jantar, porque esses rituais já não existem; o meu pai perdeu o sabor e com ele o olfacto.
Triste, não é?
E agora, que acabo de escrever, sinto-me numa circunferência. Não disse nada de novo, não sinto nada de novo. Nada mudou na minha vida. A não ser, talvez (e isto também é em si triste), uma certa normalidade nesta tristeza, neste acostumar de tristezas feitas rotinas.

8 comentários:

Anónimo disse...

estas novidades dos tempos actuais são muito estranhas, tu criaste este espaço para escrever, tinhas uma intenção de guardares um lugar onde pudesses continuar a fazer o que tanto gostas: escrever sobre as coisas que te são importantes, e imagino que nisso previas uma certa continuidade do trabalho jornalístico, mas mais de opinião, de um olhar sobre as artes e sobre o mundo. Mas a verdade é que este espaço que criaste ganhou uma vida própria, que não pode escapar à tua vida, que é demasiado absorvente e que te consome de tal modo que não te podes libertar dela para olhar em volta com a tranquilidade necessária para depois a traduzires por palavras. Se pensares bem, essa impressão de estares sempre a escrever sobre o mesmo é maravilhoso, porque abriste o teu coração aos teus amigos, que te adoram, e que te vão lendo. No fundo abriste o teu diário. Isso é um privilégio muito grande para quem te acompanha.
É raro, feito assim com tanta disponibilidade e sinceridade. E, através de ti, vamos partilhando o teu amor pelo teu pai e pela tua família e pelas pessoas de quem gostas. Amiga, provavelmente precisas de tempo. Eu também acho um desperdício que não estejas a desenvolver as qualidades que mostravas ter em potencial e que se possam perder porque simplesmente não as praticas. Mas também este, provavelmente, não é o momento para pensar nisso. Há coisas muito mais importantes na tua vida. E a verdade é que mesmo que não escrevas, eu sei, porque tenho testemunhado isso, tu continuas muito viva, muito apaixonada pela vida e a olhar com muito interesse a arte e o mundo que te rodeia. Isso tu não perdeste de todo! C.G.

sweety disse...

não vamos sequer medir a dor e a angústia das nossas vidas, minha querida. o meu pai e a minha mãe já se foram. já nem posso discutir contigo se o meu pai gostava mais de café do que o teu para ter que abdicar involuntariamente do seu sabor, ou se o facto de ele pertencer desde que eu me lembre a um grupo que se chamava "Almoçaristas" explica como ele era um bom garfo e amava os prazeres da vida, como comia e bebia bem... não, princesa, não quero falar nada disso. quero que tu faças aquilo que já te disse: disfruta o máximo. não penses. não mintam. amem-se. falem da morte como se fosse uma passagem. como se se fossem encontrar um pouco mais tarde. já não há nada a fazer. então aproveitem agora os momentos. a primavera. a tua mãe vai ter todo o tempo do mundo para ficar perdida e para encontrar um caminho para a vida. tu vais ter tempo para te concentrares e seres a fantástica jornalista que és (já sabes que estas coisas tiram a concentração total!!!)
O teu pai "acalenta a ilusão de sair do hospital em definitivo" porque é a lei da sobrevivência a falar por ele. Claro que ele se agarra à vida. É o que todos nós fazemos! O que esperas? Enquanto há vida há esperança! Nunca ouviste?
mesmo que não seja verdade! mas pode haver um milagre, sei lá! também não sei se aparecem aí hoje extraterrestres! ou mesmo a Nossa Senhora! Ou se cai um meteoro! e ele até pode ficar bem, com essas limitações! é verdade! eu vi, no ipo, casos assim! eu sei de casos assim! conheço casos assim! um mesmo que continua a trabalhar, leva um lenço ao pescoço e consegue falar mt baixinho.
Portanto, enjoy! vivam os momentos agora! já parece o anúncio. Mas é verdade!
Vais ver, minha querida, que terás muito tempo para chorar a tua vida quando ela se tornar realmente um misto de dor e angústia pela perda real do teu pai. Agora ainda não aconteceu. joga com ele uma bisca por mim! e bjinhos para os dois.

Anónimo disse...

Um beijinho, amiga. Não sei dizer mais nada. Desculpa. Margarida

nana disse...

http://marulhos.blogspot.com/2007/03/verdades.html


porque te entendo
tão
tão
bem....

um abraço apertado na angústia do não saber que pedir ou sentir.

MCosta disse...

Queria tanto escrever-te, dizer-te alguma coisa que fizesse alguma diferença, que te pudesse dar uma milésima de conforto... Infelizmente as palavras não são o meu forte, e como pelo lado de cá deste ecran as coisas também não andam muito famosas, só te posso dizer que penso muito na agonia que estás a atravessar e que desejo-te toda a força e coragem do mundo.
Não pares de ecrever, mesmo que te pareça que estás a cair em repetição, não deixes de deitar cá para fora os teus sentimentos, sejam eles de amor ou de raiva.
Há sempre alguém que te lê com muito carinho.

JPN disse...

é isso, lemos-te, estamos aqui. a tua circunfrência é uma espiral. estamos sempre a crescer, a estruturarmo-nos por dentro, parece que batemos na mesma tecla mas olha, a diferença deste acorde? e do outro? estás a ouvir? É isso, já mudaste de sitio e ainda estamos aqui. Há uma coisa curiosa. Escrevemos sobre a tristeza e o facto de escreveremos torna-nos mais alegres. Escrevemos sobre a morte, sobre o medo de perdermos os que mais queremos, e estamos a escancarar as portas da vida, a aproximarmo-nos daquilo que sentimos com uma intensidade que não sabíamos. Nem te preciso de dizer para lutares. Mal te conheço e já sei que só sabes fazer isso. Abraço

Elsa Serra disse...

...não te conheço... mas fiquei ligada às tuas palavras, às tuas emoções, sobretudo porque há 10 anos fui internada no Verão e saí no Outono estive a morrer e sobrevivi...compreendo-te tão bem e admiro a tua coragem e as tuas palavras bonitas...deixo aqui um abraço (venho aqui há uns meses)

IPQ disse...

Elsa, um beijo especial para ti. Fico contente por teres superado a tua batalha. Talvez eu também ainda aqui escreva daqui a dez anos