sexta-feira, junho 22, 2007

A dignidade

O cancro assusta-me, não o posso negar. Pensar que posso voltar a ficar doente a qualquer momento, assusta-me. Como já o disse várias vezes, tento (e acho que consigo) não viver presa nesse medo, não o deixo paralisar-me. Mas ele ronda-me, umas vezes com mais intensidade, outras com menos, mas ronda-me.
Ter cancro é horrível para além do que se possa imaginar. Porque estar doente nunca é fácil. Nem mesmo quando se tem uma gripe. E o cancro, apesar da evolução da medicina, ainda é uma doença muito mortal. Quando alguém nos diz que temos cancro conseguimos cheirar o odor da morte. Eu senti-o claramente. E o cancro é ainda mais horrível porque as armas que existem para o combater nos definham ao ponto de, por vezes, serem, elas próprias, causadoras de morte. Eu não posso falar da morte com conhecimento de causa, porque continuo aqui. Mas sei bem o que a quimioterapia e a radioterapia nos fazem. Sei bem até onde desci, na minha dignidade, sei que dores passei, o desespero que vivi durante os tratamentos e nos meses que se seguiram.
Mas fiz tudo o que me mandaram e voltaria a fazê-lo de novo, se o tempo voltasse atrás. Porque a mim nunca me mentiram, nunca me deram falsas esperanças, nunca me pintaram cenários cor-de-rosa, nunca me deram hipóteses para além das viáveis.
Os médics não são deuses, não são donos da poção da vida, não nos podem devolver o que perdemos com a doença. Mas os médicos, e muitos parecem esquecer isso, são pessoas e, como tal, têm o direito e a obrigação de nos tratar com dignidade, de nos permitir essa dignidade e, sobretudo, de deixarem que caia sobre nós o poder de decidir o que fazer quando não há nada mais a fazer.
Eu sujeitei-me a seis ciclos de quimioterapia e a 25 tratamentos de radioterapia porque adoro a minha família. porque tinha um bebé de oito meses à minha espera, porque tinha um companheiro fantástico do meu lado. Mas também porque sempre tive a noção exacta da minha doença, da sua extensão, das suas implicações, dos passos que podia tomar, dos riscos que estava a correr. E isto fez toda a diferença. Os meus médicos nunca me mentiram. Um houve, até, que foi excessivamente sincero o que, na altura, me deixou de rastos e me fez odiá-lo por várias semanas. Mas, apesar de saber que o cenário poderia complicar-se a qualquer momento e muito rapidamente, os meus médicos sempre me disseram que o objectivo de tudo era a cura.
Essa honestidade deu-me a força para enfrentar as dificuldades com dignidade.
Se na altura me tivessem dito que o tumor já estava muito metastisado e que dificilmente haveria cura, talvez eu tivesse tomado decisões diferentes das que tomei. Talvez não. Mas sei que seria eu a decidir, a colocar tudo na balança e a decidir o que fazer com o tempo que me restasse. É assim que quero fazer se um dia a doença voltar: decidir o que fazer.
Não consigo perceber como há médicos que mentem, omitem grosseiramente informação aos seus pacientes, os deixam acreditar numa coisa que não é verdade e, sobretudo, os submetem a tratamentos, a sofrimentos desumanos sem qualquer tipo de valor acrescentado, fazendo apenas com que o pouco tempo que lhes resta seja passado em sofrimento e em degradação. Morrer aos poucos não deve ser agradável, viver com essa faca sobre a cabeça, de que o fim está muito muito próximo não é pêra doce, mas viver tudo isso assistindo a uma degradação progressiva do nosso corpo causada pelos tratamentos que nada fazem para além de nos deixar mais moribudos, parece-me um crime.
Porque a nós, doentes oncológicos, a dignidade é, por vezes, a única coisa que no resta.

quarta-feira, junho 20, 2007

Porra

Que puta de vida! Não há mais ninguém que me é querido para ficar gravemente doente?

segunda-feira, junho 11, 2007

Datas

Amanhã o meu filho faz três anos.
Amanhã faz um ano que me casei.
Hoje telefonei à minha mãe para voltar a insistir nesta coisa de nos vermos, de tentarmos passar juntas algum tempo de qualidade.
Ela estava triste, de voz rouca. "Hoje estou em baixo", disse-me. "Faz quatro meses que o pai está internado". Quatro meses, pensei. Quatro meses, penso agora. Se é verdade que houve um momento em que pensei que tudo ia acabar, não é menos verdade que há quatro meses atrás eu pensei que o meu pai iria fazer uma operação muito complicada e mutiladora, mas que quando passasse o pós-operatório, iria para casa, para junto dos seus, sem mais complicações do que aquelas que já sabíamos. O meu pai ia tirar a faringe, iria deixar de falar para sempre mas, com um bocadinho de sorte, continuaria a comer pela sua boca.
Hoje, quatro meses depois, o meu pai está vivo, o que, logo à partida, contraria todas as perspectivas e finta todas as contabilidades, mas perdeu muito mais do que a voz.
Enquanto falava com a minha mãe pensava nas datas e de como simplesmente deveríamos apagar algumas da nossa vida. ´
Há datas que não se deviam lembrar, deveriam permanecer no esquecimento.
O 11 de Fevereiro é uma delas. e todos os 11 que se seguem no calendário também.