domingo, outubro 02, 2005

Dávida

Há certos acontecimentos que nos fazem pensar na vida de uma nova perspectiva. De há uns meses a esta parte a morte tem-me acompanhado, pelo menos mais de perto do que seria suposto a uma pessoa da minha idade. Estar doente, lidar diariamente com uma realidade que nos aproxima do fim da vida não é agradável. Mesmo que essa aproximação não tenha necessariamente que se traduzir em realidade. No entanto, só o facto dela, da palavra, passar a fazer parte do nosso vocabulário de uma outra forma, faz com que a sintamos mais presente no nosso dia-a-dia. Volta e meia, mesmo nos momentos de melhor disposição ou de maior alegria, dou comigo a pensar como será se morrer daqui a um ou dois anos e na injustiça dessa ameaça que paira sobre a minha cabeça.
Estes pensamentos não são muito agradáveis mas eu tenho-os e, por vezes, é necessário algo de mais estraordinário acontecer para ter a noção de como tudo é relativo, de como estar doente não é uma sentença de morte e mais, como pessoas que, aparentemente, não tem nada que lhes limite a esperança de vida, se encontram com a morte. Foi o que aconteceu ontem. No regresso de uma festa deparei-me com um acidente de viação. Ali, bem à minha frente estava um corpo inanimado. Provavelmente morto. Um homem de capacete estava deitado no chão ao lado de uma enorme poça de sangue. Parecia morto. Parecia jovem. Pensei imediatamente em quem seria, quais seriam os seus sonhos, quem seria a sua família. E aí percebi o choque, o horror. O encontro com a morte não estava marcado mas, mesmo assim, aconteceu. Aquele rapaz ali deitado à minha frente, provavelmente não teve tempo para se despedir da vida. Não pôde fazer nada para contrariar a sua "sentença". Ela chegou e isso bastou. O ditado diz que a infelicidade dos outros não faz a minha felicidade mas, a verdade, é que nesse momento percebi a minha sorte. A mim foi-me dada a oportunidade de lutar pela vida, de me agarrar a ela com unhas e dentes. De mostrar o quanto estou empenhada em viver. E ali, naquele momento que não durou mais que três ou quatro segundos, senti-me feliz por essa oportunidade e dei-me conta da fragilidade que envolve a nossa existência. Tudo pode depender de uma fracção de segundo, de um instante.
Esta tarde, quando tive nas minhas mãos uma pequenita vida, voltei a pensar sobre o rapaz de ontem. Ter um bebé nos braços, ver toda aquela fragilidade mas, em simultâneo, toda aquela vitalidade e alegria ajuda a perceber como a vida é realmente uma dávida, algo a preservar.

1 comentário:

Cristina C. Azedo disse...

É um longo caminho pela terra fora
É um longo caminho através das areias movediças
E tudo pode mudar, e há-de mudar

Há uma coisa que pode permanecer
E é o teu coração
sempre em ti
Sempre a respirar e a palpitar dentro de ti.

Por outras palavras, em bom português: arreia-lhe forte e feio, miúda linda.
Dona Ema